Há oito anos eu faço espetáculos de dança em minha cidade. Sempre no final do ano, usualmente em Dezembro.
Começo os ensaios em Fevereiro e respiro mostra de dança praticamente o ano todo. Paralelo às coreografias para a mostra, sempre temos mais duas ou três, devido aos shows e eventos no qual somos convidadas a dançar.
Há um ano, quando inaugurei meu estúdio (mais facilidade de ensaios, uso da sala em qualquer horário e etc) percebi que as aulas ganhavam mais agilidade e as bailarinas, mesmo as iniciantes, se desenvolviam com maior rapidez.
Neste ano, a partir da idéia da Shie (nossa Profª de Ballet e Gospel) resolvemos fazer um Festival de Férias, em Julho, meio do ano, tudo 'mais leve e informal'.
Aí resolvemos encarar o desafio de ter coreografias extras, para o Festival (teríamos somente cerca de 8 aulas para criar, limpar e deixar 'bonito').
Nunca o estúdio ficou tão agitado.
Alunos de ballet e jazz ensaiavam, liberavam a sala pros meninos e seus solos especiais, três turmas de dança do ventre criando e ensaiando, e em meio a tudo isso, eu encasquetei que queria uma performance especial das Professoras, com a super estilosa 'And all that Jazz' do musical 'Chicago'.
E aí já viu né? Bailarina de DV tentando dançar jazz...sempre tem uma 'mãozinho girando, um quadril mais solto' e a Shie corrigindo.. e dá-lhe pernas para o alto, e olha que surgiu até um cancan! Teve criança que não se aguentou e quis olhar de pertinho.
Foi um desafio.
E deu SUPER CERTO.
Eu tinha que dirigir um elenco de mais de 40 bailarinos. Alunos que não eram meus. Pessoas com estilos diferentes de ensaiar. (e eu brigo porque 'ensaio' é diferente de 'treino' e ai o tempo, o relógio, o horário marcado com o pessoal da Prefeitura para liberar o 'teatro' - que é na verdade um antigo cinema).
E lembrando que eu estava há 15 dias detonada devido a uma inflamação de garganta somada a uma febre misteriosa que nunca passava.
E dá-lhe eu no ensaio geral toda enrolada em cachecol, moleton e vamo que vamo.
Diário de uma Diretora Artística:
*Decido que vamos encerrar ao som de 'Tente Outra Vez' de Raul Seixas. Divido os refrões e cada turma entra no palco com sua coreografia. Ao final, as professoras e, em seguida, o elenco todo, só para´a última frase 'Tente outra vez'.
*As professoras não entenderam muito bem porque decidi que cada uma ia entrar em cena com sua cadeira. São oito anos fazendo espetáculos e três módulos do Curso de Direção Artística, em SP. Não ia ficar explicando. Mas pra resumir: parar a adrenalina do espetáculo pra colocar objetos em cena, mesmo com blecaute, 'quebra' o andamento da coisa. Fora o risco da pessoa colocar os objetos em local errado. Mas ok, ninguém questionou e deu tudo certinho.
*Meu sonho de consumo: ter um assistente de camarim, só pra controlar entrada e saída dos grupos e soltar a música. Não foi a primeira vez que tive que correr, empurrar pessoas e ir dar o sinal no walk talk - vestindo apenas sutiã, meia calça e short. Céus!
*Final do evento: só eu e marido ficamos arrumando tudo. Meu próprio assistente foi embora, o elenco saiu pra comemorar e a única professora que ofereceu ajuda foi a Shie. No próximo evento vou deixar uma escala e cada professora vai cuidar de uma parte. Sugestão da Shie, muito bem vinda, por sinal. As vezes eu me sinto boba por fazer as coisas sozinha e não pedir ajuda. Preciso aprender a pedir, já que nem todo mundo tem a percepção e a solidariedade em ajudar.
*Chego em casa, após colocar roupas pra arejar e guardar alguns itens, abro um arquivo no Pc e anoto os grandes nomes de todas as turmas, que surgiram durante o evento. Bailarinos e bailarinas especiais, que certamente tem um 'duende' ali. Preciso falar com eles depois, e sobre eles com as professoras.
No dia do evento:
9h às 12h - no teatro, arrumando o palco de madeira cheia de farpas (preocupada com a Shie usando ponta, e minhas meninas dançando descalça) foram uns três rolos de fita crepe. Varrer o palco. Colocar tecido branco pra rebater a luz, colocar tecido no corredor de entrada pra proteger a passagem do camarim. Comprar flores pra decorar o hall de entrada.
12:30 às 13:30: mercado. um horror, lotado. mas precisava comprar comidinhas pro elenco, afinal camarim que se preze precisa ter comidinhas! Salgadinhos, palitinhos de chocolate, amendoins. Guardanapos. embalagens.copos.Bebedouro (porque a prefeitura só empresta o local, mas nós é que temos que providenciar água, copos, papel e etc. é, novos tempos, novas adaptações.)
14:00 às 14:30 - almoço (que marido faz, amém!) e tento dormir um pouco, tenho que arrumar o cabelo às 15h (vou usar o candelabro, preciso domar os cachos). O cara da luz liga, dizendo que já está no local. (era a primeira vez que ia trabalhar com o Julio, tadinho! preciso correr lá e dizer como gosto da luz).
15:00h- deveria estar no salão, mas passei pra falar com Julio.
'Não Julio,não quero isso parecendo um bordel, pode tirar essa luz vermelha.'
'Julio, branco. Branco e branco, só. o tempo todo.
Nada de luz piscando e todo o elenco tem que aparecer.
Tá bom, um amarelinho pode, deixa eu ver o tom. Não, esse 'morre'.
Esse azul serve, é clarinho.
O que é isso: Ah, luz pra correção? Gostei, pode usar. Ajeita esse canhão esquerdo, tem um ponto cego no palco.
O que é isso? 'Arara'?? Nunca vi. Deixa eu ver, quero ver. Hum... tá gostei, pode usar.
Mas tá escuro ainda!
(Meu iluminador, o Mauricio, trabalha com pelo menos 16 canhões, mais set light e uns três focos. O Julio foi chamado às pressas, porque não teríamos luz, apenas a própria luz do teatro. No dia do ensaio descobrimos que 3 refletores estavam queimados. Bem, prefeitura, dia de jogo do Brasil, eu preferi não arriscar e chamei o Julio. Pouca grana, negocia aqui e ali, evento simples e tals, o rider estava bem diferente do que costumo trabalhar. Tínhamos apenas 08 canhões.
Mas DEU TUDO CERTO. Julio arrasou! ADOREI!)
15:30 - Tupete (meu cabeleleiro) naquela paz de sempre, nem questiona meu atraso e ainda me recebe com sorriso e café fresquinho. 'Tem dança hoje né? Ok, vamos lá ficar linda'. Saio de lá às 17h e volto pro teatro.
17:10h - Julio, preciso testar o som e a luz.
Pânico! Descubro que usaram o som do local para cobrir outro evento (uma festa junina de uma escola municipal) e retiraram as caixas de retorno. Sim, SEM RETORNO. Surtei.
Julio, muito calmo (ponto pra ele) traz uma caixa, um dvd e vamos lá usar esse som.
Ele também me diz com toda a calma do mundo, que ficaria no som e seu assistente na luz, mas o assistente não pode vir e...quem ficaria cuidando do som?
Felipe nem teve como dizer não. Quem mais ficaria cuidando do som?
Parecia coisa de bruxo, ele disse: 'Se o leitor do dvd não estiver bom, pode dar problema no som'. Tá, no momento do evento- ainda bem, foi no final e na entrada das professoras o som parou- por um segundo- e voltou. Mas ok, profecia do Julio cumprida.
17:40 - Saio do teatro e vou pra casa. Quando entro no banho é que lembro que nem fiz a unha. Tudo bem. Uma base em mãos e pés e vambóra. Sorte que, virginiana que sou, a mala estava prontinha desde a noite anterior. Pegar walk-talk, programas extras pra colar no camarim, incensos pra aromatizar o teatro todo e trazer boas energias, minha garrafinha de água. Ao pegar o celular, descubro que meus créditos acabaram. Caramba! Obrigada Létícia! (minha aluna me emprestou e eu devo ter acabado com os créditos, de tanto que telefonei pro Felipe pedir pra aumentar o retorno.)
18:40 - chego no local e começo a arrumar tudo, varro o palco novamente, porque com a instalação da luz, várias coisas caíram pelo palco. Lá estou eu, maquiada, arrumada e varrendo o palco. Esse momento é especial, há oito anos faço isso. A última coisa antes de entrar em cena: varro o palco. Imagina um Michael Jackson fazendo isso? Uma Madona? Pois é. Mas toda vez que eu quero reclamar, lembro da passagem bíblica de Jesus lavando os pés de seus discípulos. Sei que parece maluco, mas é como se fosse uma lição de humildade pra mim: 'Varre o palco Luciana, porque isso aqui não pode ser vaidade. Depois que a luz acende, você é só uma pessoa comum."
20:16h - Reúno o elenco (como é possível vaber todo mundo nesse corredor que chamam de camarim?) e começo a prece: 'Eu seguro a sua mão, para que possamos fazer juntos o que eu não consigo fazer sozinha'. E palavras surgem, e eu começo a dizer coisas muito bonitas e tem gente que chora. Alguem aperta minha mão com tanta força, mas não me lembro quem estava ao meu lado. E eu falo e me emociono muito. E vamos lá, hora do show.
Eu vou abrir o evento com uma ousadia: Dançar 'Dona do Dom', na voz de Bethânia. A música começa, o retorno não está do meu agrado. A platéia está agitada. Os primeiros acordes. A voz de Bethânia, poderosa e forte, ecoa pelo teatro LOTADO. Eu me levanto e abro os braços. A platéia silencia.
Sinto uma energia muito forte em mim e em tudo à minha volta. A luz bate em meu rosto e de relance, vejo uma mulher levando a mão ao rosto. Ela enxuga uma lágrima. A conexão foi feita. Deixo Bethânia cantar e danço muito pouco, muito calma. Não preciso fazer muito, a música já faz tudo. Mas fico insegura porque não ouço muito bem a música.
É meu momento, e estou plenamente feliz.
A cada entrada dos grupos, a platéia vibra enlouquecida.
Grandes momentos na noite.
Um elenco impecável.
Um medinho antes do duo dos meninos - me lembro que moramos numa cidade de 30mil habitantes e com alguns conceitos ainda arcaicos. A platéia delira! Pessoas aplaudem em cena aberta. Eles arrasaram, que orgulho deles!
André e Xandy
O Xandy passou mal, a Shie pediu pra soltar a música e ele dançou com tudo. A cada entrada na coxia, respirava e se encolhia, mas voltava e fazia bonito. Cãimbras, na barriga. Tadinho. Uma hora, eu toquei a barriga dele, foi instintivo, quando ele entrou na coxia. Fiquei com vergonha. Mas é como se com a minha mão eu pudesse tirar a dor. Ele brilhou, a noite foi dele, de novo.
Minhas professoras me deixaram orgulhosa, tudo perfeito.
O Xandy passou mal, a Shie pediu pra soltar a música e ele dançou com tudo. A cada entrada na coxia, respirava e se encolhia, mas voltava e fazia bonito. Cãimbras, na barriga. Tadinho. Uma hora, eu toquei a barriga dele, foi instintivo, quando ele entrou na coxia. Fiquei com vergonha. Mas é como se com a minha mão eu pudesse tirar a dor. Ele brilhou, a noite foi dele, de novo.